Sábado de carnaval. O tumulto havia diminuído por conta do início da missa das 19hs, o pessoal no bar discutia se era justo ter que parar a folia por esse motivo, muitos cantavam e diziam heresias para provocar a turma dos “beatos”, que estava indignada e já havia recolhido às pressas os instrumentos. Fiquei do lado dos que, se a história dos tais beatos proceder, vão para o inferno. Não tem cabimento ter que parar a festa de carnaval por causa de uma religião só. Quer dizer, se houvesse mais seis igrejas nas proximidades e, cada uma com um culto em um horário diferente do dia, não se poderia foliar.
Olhava em volta e via tantas figuras da cidade, tanta gente que é importante dentro daquele pequeno círculo carnavalesco, alguns que realmente só parecem ganhar vida aos meus olhos no carnaval. Chovia, os hereges cantavam, zombavam. Algumas pessoas de fora pediam que a baderna continuasse. Com o passar de alguns minutos a coisa foi se dispersando. Dei meu último gole na cerveja, saí à francesa e fui em direção ao carro, a cada passo as cantorias e risadas se distanciavam mais, até se perderem por completo naquele ar fresco. A igreja estava toda iluminada e com a porta fechada e um pessoal fazia os últimos ajustes para o baile de carnaval na praça.
Sentando dentro daquele sofá móvel, hesitei por um instante, reparando os poucos pingos de chuva caindo sobre o vidro do carro. Observei alguns casais que pegavam filmes na locadora, esse tipo de cena, como aquela de ver casais felizes passeando de mãos dadas como se não enxergassem mais ninguém além de deles próprios, vez em quando trás certa melancolia aos solteiros, sozinhos ou carentes. Não foi isso que senti aquele dia, ao contrário, há tempos isso não me comove. Pus um som diferente pra contrastar com todo aquele clima de carnaval e saí sem destino.
Algum tempo depois, estava num posto de gasolina vazio com o banco inclinado para baixo, deitado, mais uma vez olhando a chuva, que estava forte batendo no vidro. A cabeça estava efervescente, milhares de pensamentos impetuosos sobre tudo o que se possa imaginar, mas ao menos tempo se fixando em certos pontos, tamanha confusão que cheguei a pensar que aquele dia descobriria o mistério do universo. A chuva que cruzava a luz âmbar do poste e se chocava com violência contra os vidros do carro, depois escorria tranqüila, se fundia com as belas músicas de Nick Drake e formava uma junção espantosa em minha mente. Surgia-me uma idéia, que se misturava com a anterior e a posterior. Em seguida se distanciavam e surgiam outros acontecimentos alheios que iam crescendo até “me darem sofrível noção de realidade.” Aos poucos isso foi se esvaindo sem me explicar coisa alguma. Então lembrei: era meu aniversário, havia marcado um churrasco em minha casa para mais ou menos uma hora atrás. O pessoal já devia estar lá. Com certeza o pessoal já estava lá — realmente, até algumas pessoas que eu nunca tinha visto.
Mesmo sabendo do atraso não fui embora, andei mais um tempo, encontrei pessoas, acho que estava tentando fazer que voltasse aquele meio segundo de aparente lucidez que quase tive. O que não aconteceu, o céu já estava estrelado. Alguns sons abafados começaram a me soar familiar, ouvia telefone tocar, pessoas passando, até que alguém remexeu a maçaneta da porta e, de repente, me dei conta de que estava parado em pé, estático e encarando um azulejo — que por sinal tinha um rejunte mal feito — no banheiro da empresa onde trabalho.
quarta-feira, 25 de março de 2009
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