segunda-feira, 7 de setembro de 2015

Hotel Garopaba


São 21:59h e estou sentado junto a uma mesa colada à parede, apenas de cueca, no hotel Garopaba. Cheguei até aqui por uma combinação de frustrações, ansiedades e pulsões hesitantes. O quarto é simples — se encaixa na categoria dos sem condicionadores de ar —, possui três camas de solteiro, banheiro com lavabo, frigobar e esta mesa. A televisão dá acesso a três canais e o mais nítido é o SBT — um canal cujos cenários me remetem à atmosfera fechada e úmida dos programas ao estilo “Chaves”. O ventilador de teto gira na velocidade única e máxima inundando o quarto de um vento quase morno e de um som constante com periódicos estalinhos do seu rebolado. Há uma única lâmpada afixada na parede, o que deixa o lugar com uma luminosidade frouxa, quase como se à luz de velas. Juntei duas camas de solteiro, fazendo uma de casal, e tentei dormir, mas não consegui.

Este é o ideal romântico do que se imagina ser a rotina ou os métodos de um escritor: isolar-se em um hotel e, distante e anônimo, pôr-se a escrever. Não é o meu caso, embora já tenha devaneado muito com isso, não sou escritor e hoje escrevo por falta de sono e companhia.

Os meus planos desde que cheguei, há cerca de duas horas e meia, foram mutantes e incertos. Fui até o Althoff supermercados e fiz algumas compras — quatro long necks de Budweiser, um sanduíche, uma fatia de pizza (grossa, dura, horrível), chips, M & M, suco de laranja — pensando em comer algo e beber uma cerveja pra depois sair e dar uma volta pela cidade apinhada de turistas, mas o cansaço foi maior, afinal, acordei duas e meia da madrugada pra levar uma parente ao aeroporto, retornando só depois de o avião levantar voo, às cinco e quinze, e acordando às oito. Por isso, bebi uma só cerveja — uma só, aliás, foi o que a sobrecarregada moça do mercado me cobrou (dessa vez a ética ficou de lado porque estou com pouco dinheiro) — e deitei, não sem antes enviar uma mensagem de texto para um ex-professor que mora metade do ano aqui (ele não respondeu).

Imagino que, realmente, durando uns dias, a estadia solitária em um hotel pode gerar boas reflexões. No entanto, em uma noite, e com a cabeça e os pensamentos de um fugitivo, a coisa não funciona (vide esse texto, que até teve combinações razoáveis em seu início e agora vai ficando comprometido pela aparição de parênteses justificatórios como este).

São no mínimo quatro meses de convulsões e becos sem saídas. São meses nos quais impera uma falta de paciência agressiva alternada ao desespero de ver tudo ruindo e não conseguir consertar nada. Foi o que me trouxe até aqui — e deve ser o que faz muitos homens, não falo dos entediados pelo casamento, vagar por aí. É o que me amedronta sobre o dia de amanhã e o decorrer da semana.

À minha esquerda a janela entreaberta deixa ver, depois do vão do pátio interno, o peitoril de madeira no corredor dos quartos desse segundo andar. Não vejo outra coisa senão esse peitoril e um extintor afixado na parede. Voltado para dentro espio o interior do hotel por uma fresta, voltado para dentro não vejo um horizonte que suscite alguma possibilidade. A relação barata é um sintoma óbvio e agora inevitável.

*

Durmo relativamente bem. Dez pras sete abro os olhos e o coração é acometido por um leve e breve surto de palpitações — sensação de que algo, que não sei o que é, tivesse mudado enquanto dormi. Cochilo até sete e dez e então levanto. O hotel ocupa duas quadras, de modo que desço as escadas e atravesso a rua para chegar à recepção. Café da manhã só às oito, diz um rapaz vestindo a camiseta de uma marca de surfe no balcão. Volto ao quarto, pego meus óculos de sol. Atravesso a rua novamente e contorno o hotel pelo lado esquerdo, passando pelas sacadas térreas com seus condicionadores de ar a todo vapor e latas de cerveja vazias empilhadas pelos cantos. Alguns passos depois, estou na pracinha. Pessoas de meia idade, talvez o perfil majoritário dos turistas que procuram Garopaba, e não as vizinhas jovens e barulhentas praias do Rosa e Ferrugem, caminham e se exercitam na academia ao ar livre da praça. Vejo o mar repleto de barcos e os pescadores trabalhando na orla. Observo os restaurantes rustic-chique e penso em como se vira essa gente dependente de uma sazonalidade tão pronunciada. Pego a direita e subo o morro contíguo à igreja velha, um cachorro dorme enrodilhado junto ao paralelepípedo e sequer se move quando uma moto barulhenta sobe a ladeira. Em seguida desço uma escada colada a uma residência e chego à servidão, na borda direita da baía. Paro em um deque. Foi num desses apartamentinhos no declive entre a rua e o mar o lugar em que viveu Daniel Galera e seu personagem em Barba Ensopada de Sangue. Ao lado do deque há uma escada de cimento que desce até uma pedra quase ao nível do mar. Desço e sento ali, na base da escada, olhando a baía, os galpões de pescadores e as montanhas verdes que vão ficando opacas, quase dissolvidas na atmosfera, na direção do Siriú e Gamboa. Está ensolarado e pode-se antever outro dia tórrido, mas ainda é fresco. Incomodado por encher os olhos com toda essa paisagem, mas sem conseguir possuí-la ou assimilá-la, lembro de John Ruskin e Gonçalo Tavares. Ruskin sugeria o desenho como forma de aguçar o olhar, uma vez que o desenho obriga atenção e reconhecimento dos elementos constituintes de algo. O ato de desenhar, a velocidade do olhar exigida para tal, nos tiraria de uma espécie de reconhecimento superficial do mundo ao nos proporcionar uma identificação aprofundada de seus elementos. Assim, mergulhado no mais próximo do que poderia ser a verdade de algo, desenhar seria também uma das formas de posse dessa beleza. Ambos os fatos conduziriam à percepção e valorização da riqueza do mundo. Olhando o mar e a quantidade infinita de elementos inapreensíveis, chego a esmorecer. Pintar com palavras um lugar assim complexo levaria tempo, estudo, atenção. Teria que treinar o olhar, diminuir seu ritmo diante das coisas, como quer Gonçalo, conter a velocidade do olhar acostumado a desviar-se tão facilmente, o olhar superficial e distraído de um clicador de links em busca de novidades. Galera captou bons momentos de Garopaba, inclusive deu forma a uma das visões que me deixou desarmado nesta manhã: o reflexo do sol na água: “(...) o sol se refrata na superfície em lascas brancas crepitando numa revoada inapreensível de padrões geométricos.” Eu, contudo, não tenho (e também não me dou) o tempo para o desenho, fosse ele feio ou amador, retorno ao hotel, na vila histórica, para o café.

As amplas janelas térreas que dão de frente para pracinha e para o mar estão abertas e vejo um senhor solitário comendo uma fatia de melão com garfo e faca. Vejo isso ainda da rua, enquanto percorro a lateral do hotel. Ao entrar na recepção meneio a cabeça para o atendente — buscando a confirmação de que o café está servido — e ele retribui automaticamente. São cinco para às oito. Deposito óculos e celular em uma das mesas para cinco lugares à janela. Tenho a pracinha, a rua de paralelepípedos, o mar, os barcos à minha frente. O senhor solitário acabou seu melão, mas ainda está ali fitando a rua. Estamos apenas nós dois, somos os únicos comensais — é inevitável não especular sobre aquele homem, se teria apenas acordado antes do que a esposa ou se seria um viúvo aposentado em busca de companhia, se está ali há muitos dias ou se chegou há pouco. De resto, escuto as cozinheiras e empregadas conversarem sobre um parente de alguma delas, de Laguna, e elas riem alto e dão instruções umas às outras sobre os preparativos do café. Um outro funcionário do hotel se desloca da cozinha, senta-se numa mesa próxima e põe-se a observar a rua como o velho solitário. Parece nostálgico e um pouco entediado. É inevitável não especular. Em pouco tempo crio uma teia de sentido entre esses três homens que olham pela janela. Somos quase companheiros. Talvez eu precise partilhar algum sentido pra substituir a religião, há muito abjurada, e esse sentido seja tão ilusório quanto o da própria religião. De qualquer forma, isso deve ser comum.[1] Meu primeiro prato tem um pão d’água, salsichas com molho e omelete. Bebo um suco de laranja e um café. Como rápido e me sirvo com uma fatia de nega maluca, um bolinho de chuva salpicado de açúcar e canela e outro pão (esse integral) com presunto e queijo. As pessoas começam a chegar. Famílias com filhos na adolescência e pré-adolescência. Sobretudo gaúchos com garrafas de água quente e cuias de chimarrão. Não faltará mesas no restaurante espaçoso e agradável com seus lustres e janelas abertas para o ar fresco do início da manhã. Estou mastigando o bolinho de chuva e vejo uma viatura contornar a praça e passar lentamente em frente às janelas. Uma policial dirige e ela e seu parceiro viram os pescoços e observam a nós ali dentro. Fico um pouco perplexo com a beleza da mulher, cabelos longos e óculos de sol, que é mais bela do que tudo por que não há tempo de vê-la direito. Esse mistério toma conta do restante do café e minutos depois, ao ver novamente a viatura, pela mesma janela, conjecturo bobagens ridículas. Pego um iogurte para terminar. A maioria dos hospedes dá a impressão de frugalidade exagerada com relação à comida, muitas mulheres comem só frutas, embora seus filhos pré-adolescentes sejam como eu. À minha esquerda há uma família gaúcha de quatro pessoas. A mulher serve o marido, que fica ali sentado esperando. Vejo outra mulher fazer o mesmo e não consigo evitar a sensação de que aquilo é um pouco idiota. O marido da esquerda, enquanto come o que foi trazido, roça de leve os dedos no braço da esposa. São pessoas de bem com a vida.

Acabada a refeição vejo que o senhor idoso, que chegara antes de mim e saíra, está de volta, na mesma mesa, agora com uma câmera fotográfica à sua frente. Ele contempla a vista da janela como antes. Levanto e saio sem pressa. Exploro brevemente as salas compartilhadas do hotel com televisões, revistas, jornais e mesas de centro. Atravesso a rua e volto ao quarto. Logo estou descalço e sem camisa caminhando na beira do mar. A praia encheu. Não há vento e as ondas devem ter algo em torno de dez centímetros. Em nenhum momento me sinto acuado ou deslocado por estar sozinho. Pelo contrário. Como diz o filósofo pop Alain de Botton, viajar sozinho pode ser uma vantagem: “Nossa reação ao mundo é decisivamente moldada pelas pessoas que nos acompanham, trabalhamos nossa curiosidade para nos adaptarmos às expectativas de outros. Eles podem ter uma visão específica a nosso respeito, impedindo sutilmente que se manifestem certos aspectos de nossa personalidade.” Os outros podem nos inibir pela simples sensação reflexiva de observação, o que pode ter como consequência um comportamento, até inconsciente, de se moldar àquele olhar (o que torna mais paradoxal ainda a busca por atenção e observação alheia o tempo todo). Caminho com vagar, sendo ultrapassado pelos que, de tênis ou roupas de academia, se exercitam na areia. Sinto a água nos pés. O sol refletido no mar ofusca a vista. Num trecho depois do camping Lagoa Mar vejo casas luxuosas com paliçadas no barranco que as eleva a um metro acima da areia da praia. Não há cercas nessas casas e a maioria delas possui gramados e árvores enormes cujas sombras estão habitadas por pirralhos sonolentos que tomam Nescau sentados em espreguiçadeiras.

Wordsworth acusava as cidades de estimularem emoções negativas — angustia quanto posições sociais, inveja, pressa onipresente etc., daí que esses sentimentos surtiriam efeitos perversos sobre os sujeitos. A solução, para o poeta, era o contato com a natureza. Tal contato serviria de contraponto ao caos urbano e imbuiria certa resistência à competição, inveja e ansiedade — para os não religiosos, acrescento, pode ser a oportunidade para livrar-se da busca quase involuntária por sentidos sociais compartilhados e o relaxamento da autoconsciência. Não sei se isso é inerente às cidades, ou se Wordsworth se referia a qualquer agrupamento humano, mas uma coisa me parece certa: o contato ininterrupto com um mesmo ambiente — e suas pessoas — embota a visão e tende a reduzir os limites do que se tem como possível. Viajar, nesse sentido, areja nosso mundo. No meu caso em particular, aqui, o mar — indiferente a mim — traz uma agradável sensação de que a gravidade dos meus problemas é exagerada, de que os limites do que posso ou não fazer sofrem pressão direta do lugar em que vivo. Viajar, sair, não para fugir — também não para erradicar problemas, o que é um pouco ingênuo, mas para encontrar-se com um eu que só emerge quando os estímulos são outros — viajar, sair, para se encontrar.




[1] Em um ônibus, consultório de dentista ou no auditório de uma palestra uma simples troca de olhares pode forjar toda uma fantasia mental em que crio laços imaginários de cumplicidade com pessoas, sobretudo mulheres, que certamente estão pensando no que comerão no almoço ou no quanto precisam de um novo emprego. Criada a relação imaginária, às vezes acredito estar sendo detalhadamente observado e passo a agir de acordo com aquelas expectativas (expectativas inventadas por mim), e me decepciono profundamente quando o ônibus para ou a palestra acaba e a pessoa sai sem nem olhar para o lado, como se nada tivesse acontecido. Tudo é muito pior quando estou ouvindo música com meus fones, já que a música me transporta para uma espécie de personagem de vídeo clipe ou cena de filme. Acho que tendemos à fabulação de um enredo que nos ponha no centro, sempre. Criar um vínculo imaginário a partir de um ou dois olhares, mais do que a tentativa natural partilhar um momento, e mais do que simples carência, é um anseio de colocar-se como algo importante para alguém de forma a reconhecer-se no mundo, daí a sensação (o desejo) de que se está sendo observado. Deus é onipresente e nos observa, acreditam os religiosos. Já os laicos inventaram reality shows, redes sociais e outros artifícios para se sentirem observados. Ambos, religiosos e laicos, parecem precisar da sensação de que estão sendo observados para sentir-se caros e para o que o mundo faça sentido.