São 21:59h e estou sentado junto a uma mesa colada à parede, apenas de cueca, no hotel Garopaba. Cheguei até aqui por uma combinação de frustrações, ansiedades e pulsões hesitantes. O quarto é simples — se encaixa na categoria dos sem condicionadores de ar —, possui três camas de solteiro, banheiro com lavabo, frigobar e esta mesa. A televisão dá acesso a três canais e o mais nítido é o SBT — um canal cujos cenários me remetem à atmosfera fechada e úmida dos programas ao estilo “Chaves”. O ventilador de teto gira na velocidade única e máxima inundando o quarto de um vento quase morno e de um som constante com periódicos estalinhos do seu rebolado. Há uma única lâmpada afixada na parede, o que deixa o lugar com uma luminosidade frouxa, quase como se à luz de velas. Juntei duas camas de solteiro, fazendo uma de casal, e tentei dormir, mas não consegui.
Este é o ideal romântico do que se
imagina ser a rotina ou os métodos de um escritor: isolar-se em um hotel e,
distante e anônimo, pôr-se a escrever. Não é o meu caso, embora já tenha
devaneado muito com isso, não sou escritor e hoje escrevo por falta de sono e
companhia.
Os meus planos desde que cheguei, há
cerca de duas horas e meia, foram mutantes e incertos. Fui até o Althoff
supermercados e fiz algumas compras — quatro long necks de Budweiser, um
sanduíche, uma fatia de pizza (grossa, dura, horrível), chips, M & M, suco de laranja — pensando em comer algo e beber
uma cerveja pra depois sair e dar uma volta pela cidade apinhada de turistas,
mas o cansaço foi maior, afinal, acordei duas e meia da madrugada pra levar uma
parente ao aeroporto, retornando só depois de o avião levantar voo, às cinco e
quinze, e acordando às oito. Por isso, bebi uma só cerveja — uma só, aliás, foi
o que a sobrecarregada moça do mercado me cobrou (dessa vez a ética ficou de
lado porque estou com pouco dinheiro) — e deitei, não sem antes enviar uma
mensagem de texto para um ex-professor que mora metade do ano aqui (ele não
respondeu).
Imagino que, realmente, durando uns
dias, a estadia solitária em um hotel pode gerar boas reflexões. No entanto, em
uma noite, e com a cabeça e os pensamentos de um fugitivo, a coisa não funciona
(vide esse texto, que até teve combinações razoáveis em seu início e agora vai
ficando comprometido pela aparição de parênteses justificatórios como este).
São no mínimo quatro meses de convulsões
e becos sem saídas. São meses nos quais impera uma falta de paciência agressiva
alternada ao desespero de ver tudo ruindo e não conseguir consertar nada. Foi
o que me trouxe até aqui — e deve ser o que faz muitos homens, não falo dos
entediados pelo casamento, vagar por aí. É o que me amedronta sobre o dia de
amanhã e o decorrer da semana.
À minha esquerda a janela entreaberta
deixa ver, depois do vão do pátio interno, o peitoril de madeira no corredor
dos quartos desse segundo andar. Não vejo outra coisa senão esse peitoril e um
extintor afixado na parede. Voltado para dentro espio o interior do hotel por
uma fresta, voltado para dentro não
vejo um horizonte que suscite alguma possibilidade. A relação barata é um sintoma
óbvio e agora inevitável.
*
Durmo relativamente bem. Dez pras sete
abro os olhos e o coração é acometido por um leve e breve surto de palpitações
— sensação de que algo, que não sei o que é, tivesse mudado enquanto dormi.
Cochilo até sete e dez e então levanto. O hotel ocupa duas quadras, de modo que
desço as escadas e atravesso a rua para chegar à recepção. Café da manhã só às
oito, diz um rapaz vestindo a camiseta de uma marca de surfe no balcão. Volto
ao quarto, pego meus óculos de sol. Atravesso a rua novamente e contorno o
hotel pelo lado esquerdo, passando pelas sacadas térreas com seus
condicionadores de ar a todo vapor e latas de cerveja vazias empilhadas pelos
cantos. Alguns passos depois, estou na pracinha. Pessoas de meia idade, talvez
o perfil majoritário dos turistas que procuram Garopaba, e não as vizinhas
jovens e barulhentas praias do Rosa e Ferrugem, caminham e se exercitam na
academia ao ar livre da praça. Vejo o mar repleto de barcos e os pescadores
trabalhando na orla. Observo os restaurantes rustic-chique e penso em como se vira essa gente dependente de uma
sazonalidade tão pronunciada. Pego a direita e subo o morro contíguo à igreja
velha, um cachorro dorme enrodilhado junto ao paralelepípedo e sequer se move
quando uma moto barulhenta sobe a ladeira. Em seguida desço uma escada colada a
uma residência e chego à servidão, na borda direita da baía. Paro em um deque. Foi num desses apartamentinhos no declive entre a rua e o mar o lugar em que
viveu Daniel Galera e seu personagem em Barba Ensopada de Sangue. Ao lado do
deque há uma escada de cimento que desce até uma pedra quase ao nível do mar. Desço
e sento ali, na base da escada, olhando a baía, os galpões de pescadores e as
montanhas verdes que vão ficando opacas, quase dissolvidas na atmosfera, na
direção do Siriú e Gamboa. Está ensolarado e pode-se antever outro dia tórrido,
mas ainda é fresco. Incomodado por encher os olhos com toda essa paisagem, mas
sem conseguir possuí-la ou assimilá-la, lembro de John Ruskin e Gonçalo Tavares.
Ruskin sugeria o desenho como forma de aguçar o olhar, uma vez que o desenho
obriga atenção e reconhecimento dos elementos constituintes de algo. O ato de
desenhar, a velocidade do olhar exigida para tal, nos tiraria de uma espécie de
reconhecimento superficial do mundo ao nos proporcionar uma identificação
aprofundada de seus elementos. Assim, mergulhado no mais próximo do que poderia
ser a verdade de algo, desenhar seria
também uma das formas de posse dessa beleza. Ambos os fatos conduziriam à
percepção e valorização da riqueza do mundo. Olhando o mar e a quantidade
infinita de elementos inapreensíveis, chego a esmorecer. Pintar com palavras um
lugar assim complexo levaria tempo, estudo, atenção. Teria que treinar o olhar,
diminuir seu ritmo diante das coisas, como quer Gonçalo, conter a velocidade do
olhar acostumado a desviar-se tão facilmente, o olhar superficial e distraído
de um clicador de links em busca de novidades. Galera captou bons momentos de
Garopaba, inclusive deu forma a uma das visões que me deixou desarmado nesta manhã:
o reflexo do sol na água: “(...) o sol se refrata na superfície em lascas
brancas crepitando numa revoada inapreensível de padrões geométricos.” Eu,
contudo, não tenho (e também não me dou) o tempo para o desenho, fosse ele feio
ou amador, retorno ao hotel, na vila histórica, para o café.
As amplas janelas térreas que dão de
frente para pracinha e para o mar estão abertas e vejo um senhor solitário
comendo uma fatia de melão com garfo e faca. Vejo isso ainda da rua, enquanto
percorro a lateral do hotel. Ao entrar na recepção meneio a cabeça para o
atendente — buscando a confirmação de que o café está servido — e ele retribui
automaticamente. São cinco para às oito. Deposito óculos e celular em uma das
mesas para cinco lugares à janela. Tenho a pracinha, a rua de paralelepípedos,
o mar, os barcos à minha frente. O senhor solitário acabou seu melão, mas ainda
está ali fitando a rua. Estamos apenas nós dois, somos os únicos comensais — é
inevitável não especular sobre aquele homem, se teria apenas acordado antes do que
a esposa ou se seria um viúvo aposentado em busca de companhia, se está ali há
muitos dias ou se chegou há pouco. De resto, escuto as cozinheiras e empregadas
conversarem sobre um parente de alguma delas, de Laguna, e elas riem alto e dão
instruções umas às outras sobre os preparativos do café. Um outro funcionário
do hotel se desloca da cozinha, senta-se numa mesa próxima e põe-se a observar
a rua como o velho solitário. Parece nostálgico e um pouco entediado. É
inevitável não especular. Em pouco tempo crio uma teia de sentido entre esses
três homens que olham pela janela. Somos quase companheiros. Talvez eu precise
partilhar algum sentido pra substituir a religião, há muito abjurada, e esse
sentido seja tão ilusório quanto o da própria religião. De qualquer forma, isso
deve ser comum.[1] Meu
primeiro prato tem um pão d’água, salsichas com molho e omelete. Bebo um suco
de laranja e um café. Como rápido e me sirvo com uma fatia de nega maluca, um
bolinho de chuva salpicado de açúcar e canela e outro pão (esse integral) com
presunto e queijo. As pessoas começam a chegar. Famílias com filhos na
adolescência e pré-adolescência. Sobretudo gaúchos com garrafas de água quente
e cuias de chimarrão. Não faltará mesas no restaurante espaçoso e agradável com
seus lustres e janelas abertas para o ar fresco do início da manhã. Estou
mastigando o bolinho de chuva e vejo uma viatura contornar a praça e passar
lentamente em frente às janelas. Uma policial dirige e ela e seu parceiro viram
os pescoços e observam a nós ali dentro. Fico um pouco perplexo com a beleza da
mulher, cabelos longos e óculos de sol, que é mais bela do que tudo por que não
há tempo de vê-la direito. Esse mistério toma conta do restante do café e
minutos depois, ao ver novamente a viatura, pela mesma janela, conjecturo
bobagens ridículas. Pego um iogurte para terminar. A maioria dos hospedes dá a
impressão de frugalidade exagerada com relação à comida, muitas mulheres comem
só frutas, embora seus filhos pré-adolescentes sejam como eu. À minha esquerda
há uma família gaúcha de quatro pessoas. A mulher serve o marido, que fica ali
sentado esperando. Vejo outra mulher fazer o mesmo e não consigo evitar a
sensação de que aquilo é um pouco idiota. O marido da esquerda, enquanto come o
que foi trazido, roça de leve os dedos no braço da esposa. São pessoas de bem
com a vida.
Acabada a refeição vejo que o senhor
idoso, que chegara antes de mim e saíra, está de volta, na mesma mesa, agora
com uma câmera fotográfica à sua frente. Ele contempla a vista da janela como
antes. Levanto e saio sem pressa. Exploro brevemente as salas compartilhadas do
hotel com televisões, revistas, jornais e mesas de centro. Atravesso a rua e
volto ao quarto. Logo estou descalço e sem camisa caminhando na beira do mar. A
praia encheu. Não há vento e as ondas devem ter algo em torno de dez
centímetros. Em nenhum momento me sinto acuado ou deslocado por estar sozinho.
Pelo contrário. Como diz o filósofo pop Alain de Botton, viajar sozinho pode
ser uma vantagem: “Nossa reação ao mundo é decisivamente moldada pelas pessoas
que nos acompanham, trabalhamos nossa curiosidade para nos adaptarmos às
expectativas de outros. Eles podem ter uma visão específica a nosso respeito,
impedindo sutilmente que se manifestem certos aspectos de nossa personalidade.”
Os outros podem nos inibir pela simples sensação reflexiva de observação, o que
pode ter como consequência um comportamento, até inconsciente, de se moldar
àquele olhar (o que torna mais paradoxal ainda a busca por atenção e observação
alheia o tempo todo). Caminho com vagar, sendo ultrapassado pelos que, de tênis
ou roupas de academia, se exercitam na areia. Sinto a água nos pés. O sol
refletido no mar ofusca a vista. Num trecho depois do camping Lagoa Mar vejo casas
luxuosas com paliçadas no barranco que as eleva a um metro acima da areia da
praia. Não há cercas nessas casas e a maioria delas possui
gramados e árvores enormes cujas sombras estão habitadas por pirralhos
sonolentos que tomam Nescau sentados em espreguiçadeiras.
Wordsworth acusava as cidades de estimularem emoções negativas — angustia
quanto posições sociais, inveja, pressa onipresente etc., daí que esses
sentimentos surtiriam efeitos perversos sobre os sujeitos. A solução, para o
poeta, era o contato com a natureza. Tal contato serviria de contraponto ao
caos urbano e imbuiria certa resistência à competição, inveja e ansiedade —
para os não religiosos, acrescento, pode ser a oportunidade para livrar-se da
busca quase involuntária por sentidos sociais compartilhados e o relaxamento da
autoconsciência. Não sei se isso é inerente às cidades, ou se Wordsworth se
referia a qualquer agrupamento humano, mas uma coisa me parece certa: o contato
ininterrupto com um mesmo ambiente — e suas pessoas — embota a visão e tende a
reduzir os limites do que se tem como possível. Viajar, nesse sentido, areja
nosso mundo. No meu caso em particular, aqui, o mar — indiferente a mim — traz
uma agradável sensação de que a gravidade dos meus problemas é exagerada, de
que os limites do que posso ou não fazer sofrem pressão direta do lugar em que
vivo. Viajar, sair, não para fugir — também não para erradicar problemas, o que
é um pouco ingênuo, mas para encontrar-se com um eu que só emerge quando os estímulos
são outros — viajar, sair, para se encontrar.
[1] Em um ônibus, consultório de
dentista ou no auditório de uma palestra uma simples troca de olhares pode
forjar toda uma fantasia mental em que crio laços imaginários de cumplicidade
com pessoas, sobretudo mulheres, que certamente estão pensando no que comerão
no almoço ou no quanto precisam de um novo emprego. Criada a relação
imaginária, às vezes acredito estar sendo detalhadamente observado e passo a
agir de acordo com aquelas expectativas (expectativas inventadas por mim), e me
decepciono profundamente quando o ônibus para ou a palestra acaba e a pessoa
sai sem nem olhar para o lado, como se nada tivesse acontecido. Tudo é muito
pior quando estou ouvindo música com meus fones, já que a música me transporta para uma espécie de personagem de vídeo clipe
ou cena de filme. Acho que tendemos à fabulação de um enredo que nos
ponha no centro, sempre. Criar um vínculo imaginário a partir de um ou dois
olhares, mais do que a tentativa natural partilhar um
momento, e mais do que simples carência, é um anseio de colocar-se como
algo importante para alguém de forma a reconhecer-se no mundo, daí a sensação
(o desejo) de que se está sendo observado. Deus é onipresente e nos observa,
acreditam os religiosos. Já os laicos inventaram reality shows, redes sociais e
outros artifícios para se sentirem observados. Ambos, religiosos e laicos,
parecem precisar da sensação de que estão sendo observados para sentir-se caros
e para o que o mundo faça sentido.
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