“O átomo era um sistema cósmico carregado
de energia, e em cujo seio gravitavam planetas, numa rotação de espantosa
rapidez, em torno de um centro semelhante ao sol, e cujo éter era percorrido a
uma velocidade só mensurável em anos-luz, por cometas mantidos nas suas órbitas
excêntricas pela força do corpo central. E isso não é uma simples comparação,
tão pouco quanto o seria a que define o organismo multicelular como um “Estado
de células”. A cidade, o Estado, a comunidade social organizada segundo o
princípio da divisão do trabalho não somente era comparável à vida orgânica,
mas até a repetia exatamente. Da mesma forma repetia-se no seio da natureza, na
mais extrema redução, o universo estelar macrocósmico cujos grupos, nebulosas,
constelações, configurações pairavam empalidecidos pela lua, acima do vale
cintilante de neve, ante os olhos do nosso adepto. Não seria lícito pensar que
certos planetas do sistema solar atômico — esses enxames e essas vias lácteas
de sistemas solares que compunham a matéria —, ora, que um e outro desses
corpos celestes do mundo interior se encontravam numa condição semelhante à que
fazia da Terra uma sede da vida? Para
um jovem adepto meio embriagado no seu íntimo, e cuja pele se achava num estado
“anormal”, para um homem que já não estava completamente sem experiência no
terreno das coisas proibidas, tal suposição não somente não era extravagante,
mas até se impunha com uma insistência inelutável, parecendo evidente e tendo
todo o cunho de lógica e de verdade. A “pequenez” dos corpos celestes do mundo
interior seria uma objeção pouco incisiva, já que a medida do que era grande ou
pequeno perdia-se, mais tardar, no momento em que se evidenciava o caráter
cósmico das partes “mais minúsculas” da matéria, e já que os conceitos de “exterior”
e “interior” também viam abalada sua solidez. O mundo do átomo era um “exterior”,
ao passo que o astro terrestre que habitamos era, se considerado do ponto de
vista orgânico, um profundo “interior”, provavelmente. Não chegara certo sábio,
nos seus sonhos audaciosos, a falar dos animais da Via Láctea, monstros cósmicos,
cuja carne, cujo esqueleto e cérebro se compunham de sistemas solares? Mas, se
isso sucedia assim como se afigurava a Hans Castorp, tudo começava apenas no
instante em que se imaginava ter alcançado o término! Era possível que, no
fundo íntimo e mais remoto do seu ser, talvez se encontrasse ele mesmo, o jovem
Hans Castorp, mais uma vez, e mais cem vezes, bem agasalhado num compartimento
de sacada com vista sobre a noite glacial e enluarada dos Alpes, a estudar a
vida do corpo, com os dedos enregelados e as faces ardentes, sob o impulso de
um interesse médico-humanista?”
— Thomas Mann, A Montanha Mágica,
p.327-8.
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