Como
seria a humanidade se não precisássemos ter que nos preocuparmos com o ganha
pão, com a labuta diária por um padrão de vida? O que fariam o homem e a mulher
se não precisassem pensar em produção, vendas, metas, horários – se tivessem os
dias à sua disposição?
Certamente
nos depararíamos com o fundamental: o que fazer com o tempo?
O
fato de que a humanidade, que criou tanto progresso e melhorias no ambiente
físico (embora o destrua sem dó), tenha também criado um universo de valores
materiais que a afasta do fundamental enquanto teria condições, se assim
quisesse, de fazer o contrário, é sintomático para pensar sobre o quanto a
questão de o que fazer com o tempo é assustadora e desnorteante para nós,
humanos.
O
desejo de mais quando talvez já se tenha o suficiente é o que move nosso mundo.
Crescer é um imperativo: se o PIB do ano atual superou em apenas 2% o do
ano anterior, há algo de errado; se as vendas deste ano foram em 3% maiores que
a do ano passado, uma empresa pode ser vista como estagnada – suas ações cairão
no mercado, seus acionistas se descabelarão.
Fazemos
uma pós-graduação porque uma graduação já não é grande coisa quando se concorre
com outros candidatos. Fazemos um curso de inglês para crescer
profissionalmente. Inglês é a língua universal, dizem, abre portas. Mas de
repente, influenciados pelos noticiários, optamos por mandarim, a língua falada
no país que se espera ser a grande potência do futuro – pode ser uma vantagem
sobre os outros.
Assim
passamos grande parte do nosso tempo, nos tornando capital humano. Assim nos
colocamos melhor no mercado de trabalho.
Mercado
significa “reunião de negociantes em lugar público”; “lugar teórico onde se
processam a oferta e a procura de determinado produto ou serviço”. O
mercado de trabalho, portanto, é o lugar onde se processam a oferta e procura
de trabalhadores. Para o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, esse movimento acaba
por gerar um processo de comodificação, isto é, acaba por nos
transformar também em meras mercadorias.
Quanto
mais sofisticados, quer dizer, quanto mais qualificados, mais atrativos nos
tornamos. Quanto mais atrativos, maiores os salários – e é natural que,
precisando viver, busquemos ser mais atrativos que os outros.
Quanto
maiores os salários, maior o poder de consumo. Quanto maior o consumo, maior o
conforto, dizem. Consumindo mais, todavia, menor o tempo necessário a ser
despendido com o que fazer com o tempo que temos sobre a terra. Não é de
estranhar que algumas pessoas gostem de visitar shoppings quando estão
desalentadas: o consumo tende a causar bem-estar imediato, distanciar o
problema. (É uma coincidência curiosa umas das acepções da palavra droga ser:
“qualquer substância que leve a um estado satisfatório ou desejável”).
A
questão de o que fazer com o tempo pode deixar pessoas doentes. E mais, não é
de chamar atenção alguém que por perder o emprego, mesmo não precisando de
dinheiro para sobreviver, sinta-se inferior, ansiosa, humilhada, não vendo
sentido na vida?
Nunca
se considerou tão fundamental trabalhar. Ou melhor, “nunca se considerou tão
humilhante a ideia de não trabalhar”, afirma o economista André Lara Resende,
em seu livro de ensaios “Os limites do possível”. Uma série de pressões e
convenções sociais subestima aquele que não trabalha ou não ambiciona fazer uma
pós-graduação, por exemplo, para se tornar mais atrativo no mercado de
trabalho. A pessoa que não trabalha ou que não pensa nesses termos, desse
modo, tende a entender que faz algo errado e daí é um passo para se sentir
infeliz.
Da
mesma forma, a pessoa que não consome como se espera que consuma, como os
padrões vigentes impõem, torna-se, de certa forma, como evidencia Bauman,
excluída ou não desejada. “Estar à frente da tendência de estilo transmite a
promessa de um alto valor de mercado e uma profusão de demanda”. Depreende-se,
por conseguinte, que é preciso consumir as últimas tendências, lançamentos da
moda e de outros bens de consumo, para não correr o risco do anacronismo e,
assim, obter uma espécie de sentimento de pertença. Quem nunca viu uma
adolescente esperneando por um Iphone por que todas as suas amigas têm
esse aparelho? Isso não seria, por acaso, um pré-requisito para aceitação?
Toda
propaganda de liberdade de escolha dos dias de hoje, como se vê, tem algo de
contraditório: a escolha pode ser nossa, no entanto, ela é obrigatória e, além
do mais, não temos como controlar o que está disponível para escolher.
Em uma vida tão cheia de
escolhas, compromissos, obrigações, metas, horários, enfim, em uma vida tão
cheia de meios que se transfiguraram em fins, não deixa de ser previsível que
algumas questões fundamentais nos escapem (e, claro, deixem de ser
fundamentais). O preocupante, todavia, é quando a mera proposição de tais
questões, embotadas pela fluidez dos engendramentos sociais, torna-se um
absurdo estranhado.