terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Notas sobre o modo como vivemos hoje



Como seria a humanidade se não precisássemos ter que nos preocuparmos com o ganha pão, com a labuta diária por um padrão de vida? O que fariam o homem e a mulher se não precisassem pensar em produção, vendas, metas, horários – se tivessem os dias à sua disposição?

Certamente nos depararíamos com o fundamental: o que fazer com o tempo?

O fato de que a humanidade, que criou tanto progresso e melhorias no ambiente físico (embora o destrua sem dó), tenha também criado um universo de valores materiais que a afasta do fundamental enquanto teria condições, se assim quisesse, de fazer o contrário, é sintomático para pensar sobre o quanto a questão de o que fazer com o tempo é assustadora e desnorteante para nós, humanos.

O desejo de mais quando talvez já se tenha o suficiente é o que move nosso mundo. Crescer é um imperativo: se o PIB do ano atual superou em apenas 2% o do ano anterior, há algo de errado; se as vendas deste ano foram em 3% maiores que a do ano passado, uma empresa pode ser vista como estagnada – suas ações cairão no mercado, seus acionistas se descabelarão.

Fazemos uma pós-graduação porque uma graduação já não é grande coisa quando se concorre com outros candidatos. Fazemos um curso de inglês para crescer profissionalmente. Inglês é a língua universal, dizem, abre portas. Mas de repente, influenciados pelos noticiários, optamos por mandarim, a língua falada no país que se espera ser a grande potência do futuro – pode ser uma vantagem sobre os outros.

Assim passamos grande parte do nosso tempo, nos tornando capital humano. Assim nos colocamos melhor no mercado de trabalho.

Mercado significa “reunião de negociantes em lugar público”; “lugar teórico onde se processam a oferta e a procura de determinado produto ou serviço”.  O mercado de trabalho, portanto, é o lugar onde se processam a oferta e procura de trabalhadores. Para o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, esse movimento acaba por gerar um processo de comodificação, isto é, acaba por nos transformar também em meras mercadorias.

Quanto mais sofisticados, quer dizer, quanto mais qualificados, mais atrativos nos tornamos. Quanto mais atrativos, maiores os salários – e é natural que, precisando viver, busquemos ser mais atrativos que os outros.

Quanto maiores os salários, maior o poder de consumo. Quanto maior o consumo, maior o conforto, dizem. Consumindo mais, todavia, menor o tempo necessário a ser despendido com o que fazer com o tempo que temos sobre a terra. Não é de estranhar que algumas pessoas gostem de visitar shoppings quando estão desalentadas: o consumo tende a causar bem-estar imediato, distanciar o problema. (É uma coincidência curiosa umas das acepções da palavra droga ser: “qualquer substância que leve a um estado satisfatório ou desejável”).

A questão de o que fazer com o tempo pode deixar pessoas doentes. E mais, não é de chamar atenção alguém que por perder o emprego, mesmo não precisando de dinheiro para sobreviver, sinta-se inferior, ansiosa, humilhada, não vendo sentido na vida? 

Nunca se considerou tão fundamental trabalhar. Ou melhor, “nunca se considerou tão humilhante a ideia de não trabalhar”, afirma o economista André Lara Resende, em seu livro de ensaios “Os limites do possível”. Uma série de pressões e convenções sociais subestima aquele que não trabalha ou não ambiciona fazer uma pós-graduação, por exemplo, para se tornar mais atrativo no mercado de trabalho. A pessoa que não trabalha ou que não pensa nesses termos, desse modo, tende a entender que faz algo errado e daí é um passo para se sentir infeliz.

Da mesma forma, a pessoa que não consome como se espera que consuma, como os padrões vigentes impõem, torna-se, de certa forma, como evidencia Bauman, excluída ou não desejada. “Estar à frente da tendência de estilo transmite a promessa de um alto valor de mercado e uma profusão de demanda”. Depreende-se, por conseguinte, que é preciso consumir as últimas tendências, lançamentos da moda e de outros bens de consumo, para não correr o risco do anacronismo e, assim, obter uma espécie de sentimento de pertença. Quem nunca viu uma adolescente esperneando por um Iphone por que todas as suas amigas têm esse aparelho? Isso não seria, por acaso, um pré-requisito para aceitação?

Toda propaganda de liberdade de escolha dos dias de hoje, como se vê, tem algo de contraditório: a escolha pode ser nossa, no entanto, ela é obrigatória e, além do mais, não temos como controlar o que está disponível para escolher.

Em uma vida tão cheia de escolhas, compromissos, obrigações, metas, horários, enfim, em uma vida tão cheia de meios que se transfiguraram em fins, não deixa de ser previsível que algumas questões fundamentais nos escapem (e, claro, deixem de ser fundamentais). O preocupante, todavia, é quando a mera proposição de tais questões, embotadas pela fluidez dos engendramentos sociais, torna-se um absurdo estranhado.