sábado, 24 de dezembro de 2011

Conexões

Tenho aqui na minha frente seis livros: dois do Steven Pinker (“Do é que é feito o pensamento?”, e “Como a mente funciona”); um do Machado (“Memórias póstumas”); e três do F.Scott Fitzgerald, sendo um deles em inglês, pra eu ver as palavras no original – mesmo sem entendê-las direito.

Na verdade, fiquei com esse último escritor o dia todo na cabeça. O lance começou ontem, ao assistir “Meia noite em Paris”, do Wood Allen. No filme, o personagem principal, Gil, é um escritor que vai passear com a noiva e os pais dela na cidade luz. Ele é todo nostalgia e saudosismo, especialmente imaginando o lugar nos anos 20, na efervescência criativa da era do jazz, onde muitos escritores e artistas se reuniam nos cafés e festas boemias de Paris. Para o Gil, essa foi a melhor época que jamais existiu, os anos dourados. E eis que, numa das noites, depois de degustar vinhos com a noiva, os futuros sogros e outro casal pedante, ele, não querendo seguir o caminho dos outros e ir dançar, se perde voluntariamente andando pelas ruas da cidade. Quando os sinos anunciam meia-noite, porém, Gil é surpreendido por um velho carro típico da segunda década do século XX. De dentro dele, escuta o chamarem (mas não pelo nome) com grande afã, como se estivesse atrasado. Meio ébrio e sem entender direito o que se passa, obviamente ele entra no carro. Vai parar numa festa onde, entre outros, o apresentam ao casal Fitzgerald. Ele ri, se embasbaca, pensa serem sósias. A perplexidade aumenta quando o apresentam a Hemingway, um tipo enérgico e ríspido que vai direto ao ponto. Daí a coisa anda, e não vou descrever o filme todo, é claro.

Mas além de toda a criatividade do Wood Allen, me marcou a ideia (real) de que o melhor tempo é exatamente outro, nunca o presente. Isso acontece com Gil a sonhar saudosamente com os anos 20, e também acontece com outra personagem, a amante de Picasso que, mesmo vivendo aqueles aclamados anos, morre de amores pela belle époque de 1890. Por quê?

O mundo de referências típicas desse judeu louco, também é outro atrativo, e tem-se que estar bem inteirado pra pegar tudo aquilo que é jogado no ar. A cena onde Gil está numa mesa com os surrealistas, Dali, Buñuel e outro, um fotógrafo de nome esquecível, me fez perceber o quão aquilo fora bem bolado. Em seguida, Gil encontra o mesmo Buñuel em uma festa e sugere para o diretor a ideia de um filme. A tal ideia é um jantar onde as pessoas, depois de terminarem a refeição e rituais típicos desses encontros, não conseguem abandonar o lugar, mesmo sem barreira física aparente, simplesmente estão impossibilitadas de sair da sala onde estão. E é ali, no momento onde todos são obrigados a ficarem juntos, que as pessoas começam a se mostrar, a ser realmente o que são. A reação do Buñuel não poderia ter sido melhor ao receber tal sugestão. Ele pergunta a Gil as razões de as pessoas não conseguirem abandonar a sala. Gil vai saindo. Buñuel continua a perguntar e acaba ouvindo “pense nisso”.

E daí? E daí que a proposta do Gil é exatamente a mesma do filme feito por Buñuel, “O Anjo exterminador”. Esse filme não é dos anos 20, foi gravado mais pra frente, então, no momento da dica de enredo o Buñuel fica perdido com a própria ideia que ele viria a ter. É simples, mas é fantástico.

Fui desperto para vários temas, aspectos e referências depois de assistir “Meia noite em Paris”. Não que o filme seja estrondoso. Não é. É entretenimento de ótima qualidade, sem dúvida. Mas resolvi depositar ali alguns dos pensamentos já dominantes em minha mente, de modo que pude analisar e buscar exemplos dentro do filme.

As ideias, explico depois, ou outra hora. Todavia, uma das referências fortes que ficaram, foi exatamente o F. Scott Fitzgerald. Pesquisei algumas coisas sobre ele hoje durante o dia. E acabei sentindo certo mal-estar por ter feito o pacote de livros no domingo (com oito títulos e 200 faltantes) e perder a chance de colocar alguma obra desse carinha da era do jazz. A ansiedade aumentou mais quando, além de perceber todos os títulos fora da compra, lembrei que não vou ler grande parte do almejado nessas férias.

Pra me sentir melhor, como se confortasse, anotei o nome do escritor americano na minha sala de espera pessoal, onde vários outros escritores — como Gonçalo M. Tavares, Walter Benjamim, Amoz Oz, Dostoiévski, Steven Pinker, Daniel Galera, Philip Roth, James Joyce, Nabokov, Raymond Carver, Othon Moacir Garcia, Thomas Bernhard e outros — aguardam impacientes até serem chamados. Alguns estão ali há tempos vendo outros, recém-chegados, lhes passarem a perna (Dostoiévski que o diga. O russo, exasperado, chegou a dirigir-se à porta mais de uma vez , sempre praguejando seus impropérios intraduzíveis). É algo como um conjunto de candidatos esperando a entrevista de emprego. Estão todos ali, na sala de espera, meio desconfortáveis, observando a secretária atender o telefone, se entreolhando de soslaio, reconhecendo no outro um possível adversário.

Dependendo o caso, quando quero dar ênfase a algum deles, ponho asteriscos ao lado de seus nomes. Esse insigne sinal denota alto grau de necessidade por aquele autor. É como se chegasse o subordinado responsável, saído da sala de reuniões com um café em mãos, e cochichasse ao ouvido de determinado candidato que não se preocupasse, pois logo seria chamado. Tal atitude, certamente, despertaria aquele tipo inevitável de ira, difícil de esconder, nos outros candidatos — Dostoiévski, mais uma vez, saltaria da poltrona com intenção de ir embora. Mas logo seria acalmado pelo compatriota Nabokov.

Enfim, se você deixar sua mochila no guarda-volumes, passar a catraca sob a supervisão da senhora simpática a qual não sei o nome e percorrer toda a biblioteca — atravessando as mesas onde dezenas de universitários riem, cochicham, acessam redes sociais nos seus laptops e estudam — em direção ao extremo oposto (a outra trave, se fosse campo de futebol), se você chegar até lá e abrir a porta de vidro com o símbolo da UNESC e a plaquinha “sala de estudos individuais”, vai dar de cara comigo postado em uma espécie de “baia”, dessas que existem nas salas de telemarketing, onde os trabalhadores tagarelam lado a lado durante todo o dia. Se você reparar, vai ver, não haverá mais de quatro ou cinco estudantes, a despeito dos quase vinte lugares disponíveis. E se resolver sentar-se, vai perceber que aqui o silêncio será maior, que se escuta o ruído das lâmpadas fluorescentes e cada virada de página alheia. Contudo, se você chegasse exatamente agora, me pegaria rindo de admiração com o prólogo de certo livro.

Se não me engano, era jornal “The Guardian”. Se não for, não faz diferença, o conteúdo independe do nome do veículo. O lance é que em uma entrevista com Wood Allen, ao perguntarem quais os livros mais o influenciaram, ou os cinco livros preferidos, ele citou dentre estes o mesmo que me causa espanto neste momento, o “Memórias Póstumas de Brás Cubas”. Segundo o jornal, Wood Allen disse que lhe mandaram um pacote pelos correios, com os dizeres: “acho que você vai gostar disso”. E, como o livro era pequeno, ele resolveu ler. É claro, tal fato me instigou ainda mais a buscar este curioso volume nas prateleiras.

***

Hoje, 24 de dezembro, releio as linhas acima, escritas no início do mês.

É curioso que durante a leitura de alguns textos tenho sido acometido por imagens inesperadas. Enquanto percorria as palavras acima, vislumbrei dentre um buraco nos galhos de uma árvore frondosa, o morro que eu confundira com o Corcovado quando estive no Rio de Janeiro e esperava a van que nos levaria ao Cristo Redentor. Assim vem acontecendo, com flashes de momentos supostamente insignificantes que brotam do nada, como mato a crescer no asfalto:

No blog do jornal O’Globo, eu lia sobre o neurocientista português Antonio Damásio quando surgiram as dunas de areia quente sob sol escaldante de algum dia na praia; certa parte do diário de Bernardo Carvalho em Berlim, publicado no blog IMS, me fez lembrar de uma conversa que eu ouvi, sem que os interlocutores soubessem, tempos atrás, enquanto cortava as unhas dos pés, mas que nada tinha a ver com o texto em questão; uma crítica sobre o último filme do Almodóvar relampejou a busca por banheiro no mercado público de São Paulo; notícias do Oriente Médio/a volta pra casa, pelas ruas vazias, depois de uma noite de festa; resenha de As Virgens Suicidas/a saturação de não conseguir mais olhar para a matéria de uma prova; entrevista com Enrique Vila-Matas/pessoas desconhecidas a passar por mim como se eu não existisse. Isso quando uma leitura não suscita trechos de um livro que jamais pensava recordar, e faz aquela atmosfera nebulosa emergir e se tornar tão familiar, dando a sensação de saber, mas não saber que se sabe.

Seria a coincidência em alguma estrutura linguística dos textos que ativaria no cérebro sinapses ligadas a essas imagens aleatórias?

É curioso isso acontecer durante a leitura, pois é como aquela situação onde sentimos um cheiro que traz uma lembrança, mas no caso, palavras é que trazem imagens aparentemente sem relação com os textos. Ou,de outro modo, como um texto que não tem relação nenhuma com o Rio de Janeiro, muito menos com o Corcovado, fez surgir representação tão clara daquele instante em que eu esperava a van e olhava um morro por entre os galhos de uma árvore? Como se dá esse encadeamento dentro do cérebro? Quem sabe não é mera coincidência: os movimentos dos meus neurônios naquele instante no RJ foram iguais aos movimentos no momento da leitura em Orleans e, por isso, o lampejo, a mistura de duas situações tão opostas, mas tão próximas no cérebro — quem sabe.

A propósito, o prólogo de Memórias Póstumas de Brás Cubas é esse: “Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas Memórias póstumas”.

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