domingo, 14 de dezembro de 2014

Paralaxe



O mais curioso nos aspectos superiores da consciência é a notável ausência de um maestro antes de a execução ter início, embora surja um regente conforme a execução acontece. Para todos os efeitos, o maestro passa então a reger a orquestra,  ainda que a execução tenha criado o maestro — o self —, e não o contrário. — Antônio Damásio.

2.
Paro de repente, sem pensar. Vejo o mato pardo e seco do pó levantado pelos carros aderido às plantas, ao mato, às árvores. Mais além, uma viçosa roça de fumo num terreno bojudo com uma pessoa de chapéu no meio. Vejo a estrada estreita, postes de madeira vergados com fiação desgrenhada, alguns tão oblíquos que causam mal-estar. A irrupção súbita de um caminhão arrasta uma nuvem de poeira fazendo a visibilidade desaparecer por alguns segundos.

3.
Quando, comigo mesmo, avento a possibilidade consciente de evocar algo da memória, algo aleatório – penso, vou lembrar algo esquisito agora – surge espontaneamente um leque mais ou menos curto de opções na mente. Nesse instante uma pré-escolha já foi executada, não por mim. A minha mente fornece opções. Como poderia o eu-consciente buscar por algo catalogado por uma subjetividade que de repente já é outra?

4.
Ligo o carro e sigo em frente, sigo procurando um lugar adequado para mijar. A estrada de chão é infestada de curvas e buracos e mantenho os vidros fechados apesar do calor.

5.
Decido: eu quero me lembrar de uma coisa esquisita e por aí meu poder de decisão fica limitado. Pode, também, esse limite valer para o meu próprio poder de decisão inicial? Quem, afinal, decidiu o quê?

6.
O que me vem à cabeça enquanto dirijo tem a mesma linearidade de um sonho, quase a mesma autonomia. Tudo se vem e se vai sem meu consentimento. Sou muito mais expectador.

6.1.
Ideias e lembranças que mexem com o meu humor e que depois de lembradas talvez persistam por trás das cortinas, o que as desencadeia, o formato de uma nuvem, a disposição com que se revolve a poeira observada pelo retrovisor, uma reação química no cérebro?

6.1.2
Déjà-vus não percebidos?

7.
Chegando à cidade, compro lixo em embalagem colorida ou, como alguns gostam de dizer, macarrão instantâneo. Pego também algumas cervejas e vejo alguém acenar da fila de um dos caixas quase na outra ponta do mercado. É um conhecido. Receptivo e otimista, ele chega a melhorar o meu humor pelo tempo de uma convoluta baforada de cigarro. Enquanto a caixa passa os produtos dele conversamos qualquer coisa dessas que as pessoas conversam quando se encontram numa fila de mercado. Ele pergunta se estou a pé, se quero uma carona. Agradeço e por cortesia protocolar dizemos que temos de combinar um jantar ou um churrasco. Coisas dessas que sempre se diz e nunca se faz, mas se continua a dizer.

8.
Fico um tempo no estacionamento do mercado mexendo no celular. Leio anotações catadas a esmo, estocadas para servirem de lembrete ou por algum motivo que me é desconhecido no momento em que as leio. A primeira delas é o título de uma revista pornográfica em que bati os olhos na banca, e anotei pela graça: sentando na ripa; a segunda: bancorbras; a terceira: realismo histérico; quarta: rembetika music; quinta: locus gênico; sexta: documentário Bob Marley; sétima: domesticação do pensamento: ir contra. Oitava:

O fim. O começo

9.
Anoto um fragmento incompleto com a intenção de que a mente concatene tudo e forme o raciocínio inteiro no momento da releitura; mas o momento da releitura é outro, as condições e o estado das ideias são diversos. O fragmento acaba por parecer algo intrigante e até indecifrável, quem sabe escrito por outro. Assim, arruma novos meios e diferentes atribuições de significado.

10.
Por meio segundo pressinto ter um insight brilhante: penso nas pessoas também como fragmentos – fragmentos provisórios de sentimentos e afetos, em vários matizes, de referências, misturadas, desconhecidas, incompletas, de desejos, irracionais e influenciáveis, de esperanças, que vêm e vão e fazem e se desfazem, penso nas pessoas como um compêndio dialético de pulsões que se alternam. Dura apenas meio segundo, logo subestimo tudo.

11.
Lembro de um trecho do Gonçalo relido mais cedo: “Se o pensar agora é igual ao pensado, então tal não é pensar, é imitar. ‘Tu não pensas, imitas’. Eis um insulto desagradável.”

12.
Bato na porta com o nó dos dedos indicador e médio pela segunda vez. Eu sei que há alguém em casa e sei que esse alguém está a par da minha presença. A madeira da porta é trabalhada, um círculo central pequeno se irradiando em círculos maiores como as espirais de uma pedra atirada nas águas de um lago calmo.  Me concentro no olho mágico e bato pela terceira vez, agora mais forte. Os dizeres “bem-vindo” no capacho indiferentes a quem chega, de ponta cabeça, talvez dando as boas vindas a quem sai de dentro para fora: bem-vindo à rua.

13.
Aproximando-se de Nietzsche (que antecipa o inconsciente freudiano), a consciência é um subproduto ínfimo da psique. Há quem utilize uma metáfora que explicaria isso melhor: a psique, o todo do que corre por nossa cabeça, é como o mar. Já o que vem à consciência é apenas o foco de luz de um farol iluminando esse mar. Isto é, a consciência seria aquela circunferência iluminada a cada instante, uma bola de luz clareando um recorte do mar. Reconheceríamos, portanto, esse recorte, prescindo do resto do oceano, que seria iluminado apenas na medida em que o feixe de luz incidisse sobre ele.

13.1
Quem movimentaria o farol, no entanto?
Se somos a consciência que reconhece o local iluminado; poderíamos ser também o faroleiro, aquele que decide o ponto a iluminar?

13.2
Diz o Antônio Damásio, em O Cérebro Criou o Homem: “A mente é um resultado muito natural da evolução e, em vasta medida, é não consciente, interna e não revelada. Vem a ser conhecida graças à exígua janela da consciência. É precisamente meu modo de pensar.”

15.
Desisto da porta e volto ao carro. Escurece. Sigo em direção ao norte onde relâmpagos mudos racham o céu. Escancaro as quatro janelas e um vento morno invade até meu cérebro, ao som da crepitância dos pneus no asfalto grosseiro em construção.

16. 
A que direções estamos sujeitos? Talvez a poucas. As construções de moldes, diretrizes, visões, sonhos, manipulações éticas, algo como uma homeostase sociocultural para equilíbrio dos seres dentro de determinados parâmetros, pode tornar tudo bem mais previsível.

17.
Constatações de extraordinárias possibilidades latentes podem ficar apenas nas constatações. É quando a existência ou o pressentimento de uma potência é o suficiente, quando a masturbação substitui o sexo ou a ideia do sexo basta.

18.
Uma carreata de ciganos conflui lentamente para uma estrada marginal de terra à direita da pista. Sinto várias atmosferas de ocasiões já vividas, sinto essas atmosferas mais próximas, que paradoxo, mais próximas do que quando as vivi e elas se entrecortam e se esbarram e paro o carro e vejo os ciganos em carros velhos com os faróis de alerta piscando as atmosferas pululando na minha cabeça as ceias de natal os dias de carnaval as tardes solitárias deitado no tapete do quarto ouvindo músicas e a certeza de que algo grande iria acontecer no futuro e o cheiro salgado do mar nos dias de sol e nos dias em que trabalhava numa sala abafada longe do mar sonhando com o mar e os ciganos descendo dos carros e gesticulando na minha direção umas bolhas que mesclam o primeiro beijo com a imagem de uma surra que deixou marcas de cinto nas pernas e a morte vista de perto um parente num caixão com moedas de vinte e cinco centavos sobre os olhos para mantê-los fechados os sonhos com aquilo o pó em  câmera lenta cruzando um feixe de sol no meio de uma tarde preguiçosa e o baile de debutantes quando dois ciganos se aproximam e um deles dá boa noite e diz pra eu sair do carro e eu saio e eles começam a rir e umas mulheres gritam da carreata e os dois ciganos mandam eu virar de costas e eu viro de frente pra janela traseira do carro e vejo as sacolas compradas no mercado através dos vidros abertos as cervejas a comida onde tu pensa que vai dizem e riem e as mulheres da carreata gritam e eu me viro do nada e olho pros dois.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Monk


O filósofo dizia que só os homens faziam
o importante, enquanto os animais só
dispunham de ações insignificantes.

Foi então que chegou o tigre e devorou
o filósofo, comprovando com os dentes
a teoria anteriormente apresentada.
— Gonçalo M. Tavares, O Senhor Brecht

Monk, de Thelonious Monk, nosso cachorro, carinhosamente chamado de Monkinho nos últimos três meses, quando acometido de dores na perninha traseira, chamado também de Mankinho — não suportou os muitos sintomas dos muitos problemas de saúde não identificados pelos veterinários e se foi, hoje, no dia em que o tempo passou de quarenta pra vinte graus, que o sol ubíquo em mais de vinte dias deu lugar ao cinza e ao vento com chuva.

Monkinho não tinha nem quarenta dias quando lá em casa chegou. Era um filhote minúsculo, menor, eu acho, do que a maior parte dos filhotes. Era minúsculo e acuado, arisco e silencioso. Depois se soltou, aprendeu a ficar de pé, a deitar e a ir pra rua quando mandávamos. Sabia escutar e não reclamar como poucas pessoas, alegrava-se com o mínimo e em menos de um ano de vida mudou a rotina e o clima da casa de pessoas humanas e racionais que, confesso, não escutam e reclamam demais.

Deleuze não gostava de gatos e cães. Em certo sentido, quando transformados em bichinhos de pelúcia, isto é, excessivamente familiares, sem nenhuma autonomia e tratados como bens pelos humanos, eu também não gosto. “O que fazia Deleuze detestar cães e gatos não era serem cães ou gatos, mas serem demasiado humanos”, diz um texto sobre o filósofo. 

Intrigado, busquei um pouco mais: Deleuze se “admirava de como as pessoas podiam falar com seus animais. No fundo, era a humanização dos animais que Deleuze odiava. A fala humana, o gracejo familiar, obliteravam uma potência qualquer – e um animal despotenciado é tão odioso quanto o homem, justamente porque é demasiado parecido com ele.”

Ora, nesse momento em que escrevo, não consigo, ainda, entender como (tratando do prosaico dia-a-dia e não da teoria e potência humana) um homem não hipócrita, bom ouvinte e não reclamão possa ser tão odioso. Obviamente não saberíamos o que seria de um cão se tivesse o aparato cerebral que temos, tampouco se tudo o que projetamos neles tem algum fundamento.

Pois sim, ele nos escuta? O que se passa na cabeça de um cão enquanto falamos? Isso na verdade importa, quando não temos idéia do que se passa na cabeça das pessoas enquanto falamos? Elas nos escutam?

Projetamos nossas expectativas nos seres, sejam pessoas sejam cães. A relação humano-humano é complexa e bonita, mas também é muito hipócrita e tendenciosa. A relação humano-animal (mesmo o domesticado, mesmo um cão corrompido com o temperamento humano) também é complexa e, por que não, bonita, já que como a relação humano-humano envolve projeções e cumplicidade, só que menos hipocrisia e jogos de interesse?

Não que a relação humano-animal seja melhor ou mais eminente e pura. Não idealizo uma relação platônica com os cães, eles não são livres de maldade e outros desvios, embora a maldade seja levada por características biológicas intrínsecas e não por vontade consciente. O que reconheço agora, e só isso, depois que deixei me envolver por um desses seres, é um clichê: eles têm muito a oferecer em matéria de reflexão sobre racionalidade, desinteresse e generosidade.

Temos relações de humanos com os animais, contudo, temos também relações de animais com os animais. Se o homem humaniza o animal, o animal animaliza o homem ou, no caso do animal doméstico, humaniza-o com certas características humanas?

Deleuze se fosse vivo, se improvavelmente aprendesse português e se por um acidente tremendo lesse esse texto, certamente veria isso tudo como uma enorme baboseira. Escrevo no  calor  do momento e, embora mais tarde possa me sentir ridículo, agora Deleuze não me interessa nem um pouco.