quarta-feira, 4 de julho de 2018

Microcosmo como macrocosmo


      “O átomo era um sistema cósmico carregado de energia, e em cujo seio gravitavam planetas, numa rotação de espantosa rapidez, em torno de um centro semelhante ao sol, e cujo éter era percorrido a uma velocidade só mensurável em anos-luz, por cometas mantidos nas suas órbitas excêntricas pela força do corpo central. E isso não é uma simples comparação, tão pouco quanto o seria a que define o organismo multicelular como um “Estado de células”. A cidade, o Estado, a comunidade social organizada segundo o princípio da divisão do trabalho não somente era comparável à vida orgânica, mas até a repetia exatamente. Da mesma forma repetia-se no seio da natureza, na mais extrema redução, o universo estelar macrocósmico cujos grupos, nebulosas, constelações, configurações pairavam empalidecidos pela lua, acima do vale cintilante de neve, ante os olhos do nosso adepto. Não seria lícito pensar que certos planetas do sistema solar atômico — esses enxames e essas vias lácteas de sistemas solares que compunham a matéria —, ora, que um e outro desses corpos celestes do mundo interior se encontravam numa condição semelhante à que fazia da Terra uma sede da vida? Para um jovem adepto meio embriagado no seu íntimo, e cuja pele se achava num estado “anormal”, para um homem que já não estava completamente sem experiência no terreno das coisas proibidas, tal suposição não somente não era extravagante, mas até se impunha com uma insistência inelutável, parecendo evidente e tendo todo o cunho de lógica e de verdade. A “pequenez” dos corpos celestes do mundo interior seria uma objeção pouco incisiva, já que a medida do que era grande ou pequeno perdia-se, mais tardar, no momento em que se evidenciava o caráter cósmico das partes “mais minúsculas” da matéria, e já que os conceitos de “exterior” e “interior” também viam abalada sua solidez. O mundo do átomo era um “exterior”, ao passo que o astro terrestre que habitamos era, se considerado do ponto de vista orgânico, um profundo “interior”, provavelmente. Não chegara certo sábio, nos seus sonhos audaciosos, a falar dos animais da Via Láctea, monstros cósmicos, cuja carne, cujo esqueleto e cérebro se compunham de sistemas solares? Mas, se isso sucedia assim como se afigurava a Hans Castorp, tudo começava apenas no instante em que se imaginava ter alcançado o término! Era possível que, no fundo íntimo e mais remoto do seu ser, talvez se encontrasse ele mesmo, o jovem Hans Castorp, mais uma vez, e mais cem vezes, bem agasalhado num compartimento de sacada com vista sobre a noite glacial e enluarada dos Alpes, a estudar a vida do corpo, com os dedos enregelados e as faces ardentes, sob o impulso de um interesse médico-humanista?”

— Thomas Mann, A Montanha Mágica, p.327-8.