sexta-feira, 4 de março de 2016

Dos cuidados para não se deixar cegar pela luz


"Christ, I sound like FM radio. Relax." 
— Pensamento do personagem de Woody Allen,
 enquanto fala, no filme Annie Hall. 


“El sueño de la razón produce monstruos”
— Goya, Os Caprichos, gravura 43.


“O arqueiro que atira além do alvo erra tanto
 quanto o que não consegue alcançá-lo.”
— Montaigne, Os Ensaios.

I
 
Não foi algo deliberadamente premeditado, ou melhor, não tive a noção clara do processo, quero crer que acabou por instalar-se sub-repticiamente e por vias semiconscientes, até se tornar manifesto e constante, já incorporado numa disposição para a ação e como parte da minha visão de mundo. Arredio e com um incômodo ar blasé, o que lembra tédio calculado — um cheiro de Bartebly pós-moderno — e às vezes parece uma postura arrogante diante da vida, comecei a me ensimesmar cada vez mais, evitando, quando podia, o convívio com as pessoas. É disso que se trata: uma espécie de vontade de afastamento. Há aí, ao menos por ora, dois pontos influentes a se levar em conta. O primeiro é um tipo de recusa iniciada na adolescência, uma ilusão utópica de não se misturar a uma sociedade corrompida que determina as vidas; o segundo é a apropriação ingênua do que é tomado como fórmula do pensador ou do artista, encastelado, vivendo para si e para sua obra, única maneira de alcançar a iluminação, como se o simples fato de isolar-se fosse teleológico, levando a realização da potência.
Obviamente, duvido dos resultados da reclusão — ainda mais quando não sou artista nem filósofo, quando não trabalho em uma obra, quando apenas caminho em cima de um muro de intuições confusas. Não é raro sentir ojeriza do velho ranheta que fala por mim ao me irritar, por exemplo, com uma menina de dez anos fazendo festa numa piscina de plástico em estripulias que não me deixam ler. Nessas horas, entro em conflito, porque leio sobre as pessoas com curioso fascínio e, ao mesmo tempo, me afasto delas: a tensão entre uma recusa do mundo em que vivem os homens e a irremediável atração pelos homens
O início disso tudo pode ser mapeado com a imersão mais profunda no universo dos livros. Portanto, suspeito que esse texto possa não fazer tanto sentido para quem não é tão familiarizado com o meio. A leitura se tornou hábito frequente e vital, um alimento a ser consumido como os alimentos materiais, diariamente e várias vezes por dia, cuja abstinência debilita a percepção e declina o humor. Isto é, olhando por esse lado, eu poderia dizer que virei um dependente. Ou, indo mais longe, com Fernando Pessoa, “descobri que a leitura é um sonho escravizador. Se devo sonhar, por que não sonhar meus próprios sonhos?” 
De fato, existe um componente escravizador na leitura. Não à toa, Schopenhauer alertara sobre certas consequências de sua prática em demasia, ao afirmar que o excesso leitura mina o pensamento próprio: “O meio mais seguro para não possuir nenhum pensamento próprio é pegar um livro nas mãos a cada minuto livre.” Exagero ou não, já que pensamos com base num repertório, o alerta faz sentido para se atentar mais para a leitura do mundo em si, fora dos livros.
Se for verdade e natural que todo mundo que muito lê em algum momento sentirá vontade de escrever — a frase do Pessoa reforça esse desejo, uma vez que escrever seria a possibilidade máxima da criação de mundos —, eu segui um caminho quase natural. Quase porque escrever sempre foi (sempre é) muito custoso e eu sempre achei (sempre acho) que precisava (que preciso) de mais leitura para alargar a visão, para tentar compreender melhor a abrangência do que existe, do que foi feito, e não passar por bobo. Os reclusos sempre exerceram uma fascinante sedução.

II
 
Foi no Farol de Santa Marta, tempos atrás, eu estava sentado sozinho em uma mesa de plástico amarela à beira mar, debaixo do guarda-sol, com os pés revolvendo a areia fofa e bebendo uma cerveja. O garçom, de tênis, óculos de sol e boné, ia e vinha do restaurante para servir os clientes veranistas que bebiam caipiras, comiam porções, pegavam sol ou davam mergulhos na água salgada a quinze metros de distância das mesas. Foi ali que, de repente, eu comecei a chorar. Do nada, pareci transbordar um sentimento que eu não sabia o que era, mas que corria em segundo plano. Fiquei completamente apavorado. Mesmo protegido pelas lentes escuras, tive medo de chamar a atenção de alguma forma. Tentei me fixar no horizonte, depois nas gaivotas pairando contra o vento sem sair do lugar, nas ondas estourando nas pedras. Não adiantou nada, na verdade só agravou o meu desespero e chorei mais do que já chorava. Estava atordoado com a situação, que provava mais uma vez o quanto eu me desconhecia, porque em nenhum momento, desde que saíra de casa, eu me sentira triste, muito menos desiquilibrado. Claro, às vezes acontece de se buscar a nostalgia ou de mergulhar na melancolia contemplativa, e submergir nessas águas pode ser intenso. Mas não era esse o caso agora. Eu estava ali, bebendo, tendo pensamentos racionais sobre as coisas e as pessoas à minha volta, sobre mim mesmo, quando comecei a chorar. Então comecei a pensar que estava chorando — olha só, eu estou chorando —, a me ver de fora, e a me achar ridículo. Suspirei, dei um gole na cerveja e esfreguei discretamente as costas da mão salpicada de areia e úmida de suor no rosto: é ridículo me achar ridículo; por que eu seria ridículo? Perder o controle é ridículo? Mas que diabo de controle? Não. O que é ridículo? Ridículo é não conseguir mais ter espontaneidade, isso é ridículo, é analisar cada movimento, cada gesto, imaginando estar sendo ridículo; ridículo são esses metapensamentos, essa cadeia sem fim de eu pensar que estou pensando no que eu estou pensando quando não deveria estar pensando em pensar sobre estar pensando.
Chamei o garçom e perguntei se teriam um pedaço de papel e uma caneta. Eu chorei pelo excesso de autoconsciência, foi o que eu pensei na hora. Isto é, eu estava ali, analisando o mundo à minha volta, como se entendesse a lógica daquilo tudo quando me dei conta de que eu era um merda, um merda que não consegue sair de perto de si próprio e que por isso não consegue estar de verdade com os outros. Agora eu já havia parado de chorar e estava com raiva e quando o garçom voltou com o papel e a caneta, agradeci e disse que não precisava mais, que eu tinha de ir embora.

III
 
Em um pequeno artigo publicado no El País, Enrique Vila-Matas comenta sobre três posturas diante da arte literária e que serviriam também para se posicionar diante da vida.
A primeira delas é a atitude dos “elegantes solitários”, daqueles que têm desejo de clausura, “de torre de marfim, uma necessidade de isolamento para atender apenas à sua obra.” Vila-Matas assume que era admirador dessa atitude. Cita Wittgenstein e seu isolamento em uma cabana na Noruega, onde, direcionado apenas às suas ideias, o filósofo desenvolveu alguns de seus pensamentos. No entanto, Vila-Matas admite que sua visão mudou  quando se deu conta “de que estava reparando apenas em criadores de indiscutível estatura moral e intelectual.” Além do mais, a despeito das pretensas vantagens de se desvencilhar das obrigações e expectativas impostas pela vida social, que tendem a restringir a liberdade de se concentrar totalmente na obra, o fato é que “o isolamento pode produzir um tipo de escritor escassamente gentil e intelectualmente limitado, eu diria que muito comum em nossa terra, ensimesmado em seu mundinho cultural provinciano (...).” 
A segunda postura, e a que Vila-Matas passou a admirar mais, é uma atitude mais aberta, “atitudes profundamente democráticas e festivas, como a de Michel de Montaigne (...).” Ele cita a biografia do filósofo francês escrita por Sarah Bakewell, que adquiri três anos depois de ler esse artigo, e que terminei de ler recentemente. 
Montaigne tentava cultivar uma “sabedoria alegre e sociável” e se “existem temperamentos secretos, recolhidos e introspectivos”, dizia ele, esse não era o seu caso: “Meu padrão essencial é tendente à comunicação e à revelação. Situo-me em campo aberto e à vista de todos, nascido para o convívio e a amizade.” Sarah Bakewell nos conta que Montaigne apreciava mais a conversa que a leitura e que por este motivo preferiria perder a visão que a audição. Embora reservasse um espaço para si, “um compartimento privado nos fundos da loja”, Montaigne abria sua casa para pessoas de todos os cantos: “Sua casa costumava ser visitada por artistas itinerantes: acrobatas, dançarinos, treinadores de cães amestrados (...)” “e o clima era mais o de uma aldeia que de uma residência privada.” Todavia, é sempre bom ressaltar que, em se tratando de Montaigne, nada é unívoco, se ele tinha essa faceta sociável, ele podia também se mostrar cético e estoico (suas bases filosóficas helenistas) de modo a parecer até mesmo frio. De toda forma, sua postura de não reclusão, e sim baseada em “relaxamento e cortesia”, a “sabedoria alegre”, ajudava a tornar a vida mais tolerável e a adotar uma melhor postura diante do mundo.
Por último, a terceira atitude é “a de quem se irmana com o silêncio inexorável ao qual tudo se encaminha.” Rimbaud foi um dos que adotaram tal posição: “Esta atitude é muito bem resumida em ‘Adeus’, o poema em que Rimbaud conta que, tendo ardido depressa demais, busca já seu próprio outono e o silêncio.” É a atitude, enfim, daqueles que saem de cena não para se dedicar à obra, mas por outros motivos, nem sempre claros.

IV
 
Uma outra força que impele ao afastamento, à reclusão, a não sociabilidade alegre e espontânea,  é justamente a autoconsciência exacerbada. 
O processo mental de ininterrupta autoanálise crítica e a percepção dos próprios atos, e de como eles estarão sendo interpretados, tende a ter efeitos perversos. Em muitas ocasiões, experimentei julgamentos que tentaram ver a alegria como histeria, um descontrole bobo ou um sentimentalismo piegas, estado de ânimo desequilibrado que se apossaria de mentes incautas que não percebem o horror hipócrita ao redor — ou esse tipo de constatação quase niilista que conduz à distimia. Em outras ocasiões, me vi paralisado de tanto pensar e praticamente não conseguir interagir com os outros, fato que por sua vez desencadeou o constrangimento interno pelo que as pessoas poderiam estar pensando daquele comportamento, ao mesmo tempo em que disparou um sentimento de culpa e frustração cujo único alívio era deixar o local. Não é sempre assim, é claro, o que cito são situações mais extremas, para que se tenha noção mais ampla do quadro. 
Na literatura, a autoconsciência obsessiva foi bastante trabalhada por David Foster Wallace, e por outros pós-modernistas, tanto no nível formal, deixando claro que o texto tem consciência de que é ficção, quanto no nível dos personagens e seus problemas por estarem sempre autoconscientes demais. Um bom exemplo é o verborrágico e perturbador “A pessoa deprimida”, um conto do livro “Breves entrevistas com homens hediondos”, em que uma “pessoa deprimida” tem seu estado e sua relação com a terapeuta narrados de modo quase nauseante: “As formas múltiplas que os dedos enlaçados da terapeuta assumiam quase sempre pareciam à pessoa deprimida formas variadas de jaulas geometricamente diversas, um associação que a pessoa deprimida não havia revelado à terapeuta porque seu significado simbólico parecia aberto e simplório demais para perderem tempo juntas com aquilo (...)”.
Karl Ove Knausgård, em “A morte do pai”, tangencia a questão ao narrar a mudança em sua convivência com o irmão, em algum momento incerto, talvez quando tenha iniciado o ensino médio: “desde então me tornei extremamente consciente de quem ele era e de quem eu era e toda aquela espontaneidade desapareceu, cada frase que eu dizia era pensada de antemão ou analisada posteriormente, ou as duas coisas na maioria das vezes, exceto quando eu bebia, só então voltava a ter a velha liberdade. Com exceção de Tonje ou da minha mãe, era assim que eu agia com todo mundo: não conseguia mais apenas sentar e conversar com as pessoas, minha consciência da situação era por demais aguda, e isso me levava a olhá-la de fora.”
Um dos resultados da repetição desse tipo de circunstância é um forte sentimento de inadequação e desencaixe, diversas vezes associado a um olhar mordaz sobre as pessoas, que também induz ao afastamento e se relaciona com o que foi citado logo no início como sendo um dos fatores que influenciam na vontade de isolamento (a “recusa iniciada na adolescência, uma ilusão utópica de não se misturar a uma sociedade corrompida que determina as vidas”). Posso dizer também que tem a ver com o que o personagem coadjuvante Sheppard Campbell, em Rua da Revolução, de Richard Yates, experimenta em uma das cenas:
“Sheppard Sears Campbell foi obrigado a admitir que se sentia isolado no meio daqueles jovens prematuramente enraizados e de rostos ríspidos, e daquelas mulheres que gritavam e ficavam paralisadas de tanto rir de piadas de mau gosto (“Harry, Harry, conte aquela do cara que foi pego no banheiro feminino!”) ou que se calavam, num silêncio respeitoso, enquanto os maridos conversavam sobre carros (“E veja só o Chevrolet; até onde sei, dá pra comprar qualquer tipo de Chevrolet, sem exceção”), e Shep logo passou a se considerar um farsante ou um idiota.”
No que se refere à inadequação e ao desencaixe, há ainda outro desdobramento possível, que provém do ambiente onde vive o sujeito em determinada época. Falo de um meio que se tornou limitado e em que os amigos e conhecidos de sempre de repente parecem estranhos. Mais uma vez recorro à literatura (e agora a um livro que não li) para tentar deixar mais claro o que estou querendo dizer:
“Foi durante o percurso que (…) comecei a me sentir claramente uma estranha, infeliz por meu próprio estranhamento. Eu tinha crescido com aqueles rapazes, considerava seu comportamento normal, a língua violenta deles era a minha. Mas seguia cotidianamente, já há seis anos, um percurso que eles ignoravam por completo, e que eu, ao contrário, trilhava de modo tão brilhante que chegava a ser a melhor. Com eles eu não podia usar nada daquilo que aprendia diariamente, tinha que me conter, de alguma maneira me autodegradar. O que eu era na escola, ali era obrigada a colocá-lo entre parêntesis ou a usá-lo à traição, para intimidá-los. Me perguntei o que estava fazendo naquele carro. Ali estavam meus amigos, certo, ali estava meu namorado, estávamos indo à festa de casamento de Lila. Mas justamente aquela festa ratificava que Lila, a única pessoa que eu sentia ainda necessária malgrado nossas vidas divergentes, não nos pertencia mais, e, com sua retirada, toda mediação entre mim e aqueles jovens, aquele carro correndo por aquelas ruas, se exaurira (…).” (A amiga genial, Elena Ferrante).

V
 
Assisto ao filme “Profissão Repórter”, de Michelangelo Antonioni, em que um dos virtuais núcleos interpretativos é a questão existencial da possibilidade de reinventar-se inteiramente ou não, isto é, segundo Francisco Bosco, estaria implícita a pergunta: “É possível ser completamente outro?” A resposta do filme é não. O próprio nome do protagonista, David Locke (Jack Nicholson), de locked (trancado), jogaria com esse emparedamento. Antes mesmo de assumir a nova identidade, na tentativa de sair radicalmente de si, explica Bosco, Locke colocara a questão: “como repórter, ele viaja o mundo fazendo entrevistas, matérias (...), mas sente que os deslocamentos geográficos e culturais não o levam a afastar-se de si próprio, pois ele, em suas palavras, acaba codificando toda diferença nos seus próprio termos, fazendo-a desembocar sempre de volta no registro da identidade.” 
Como David Locke, evidentemente, eu não consigo me afastar de mim, ou me esquecer, por muito tempo, e sinto a prisão da identidade por vezes sufocar. A pressão ininterrupta do mesmo filtro por meio do qual atravessam todas as vivências, um filtro carregado de vícios que contamina tudo que por ele passa, e que, assim, tolda as experiências e assimilações que terminam inescapavelmente por compartilhar vários traços semelhantes — e viciados. O problema é entrever tal dinâmica apenas quando o processo já foi consumado, dado que tudo passa pelo filtro e a reflexão sobre ele próprio é decorrência do anteriormente filtrado.  
Encontro uma maneira de afrouxar a proximidade com o eu na música, e quando toco bateria e o mundo é só movimento — embora os movimentos provenham de adestrações prévias, parte delas desgastadas pelo uso repetitivo; em conversas não tão frequentes em que existe o sentimento de sintonia verdadeira entre os interlocutores; em conversas simples e engraçadas, pois o humor desarma o ranço de velhos ranhetas interiores; em certos filmes e é sobretudo  na leitura — o repositório de repertórios, observações, percepções, estranhamentos, choques, alteridade etc. —, que sinto uma dissipação maior, com o bônus de uma limpeza que por vezes realiza pequenas modificações nas peneiras cheias de baldas.  É por esse motivo que dou preferência a ela — o que ironicamente teve como colateral certo distanciamento das outras formas de suspenção do eu; mas deixemos esse detalhe de lado e toquemos o baile. 
Em uma entrevista na qual comenta sobre seus livros, Foucault diz que a experiência de ler mudava potencialmente o leitor e o impedia “de ser sempre o mesmo ou de ter a mesma relação com as coisas e com os outros.” Precisamente o que Locke desejaria obter. No entanto, Locke poderia argumentar, se estivesse meio bêbado: a leitura, por mais rica que seja, não substitui a vida, afinal, o conteúdo dos livros é sobre as coisas da vida — e se satisfazer tanto com os registros escritos não seria algo como a masturbação? Sim, seu Locke (trocadilho inevitável), mas Foucault se refere à potência da leitura enquanto dínamo transformador, no sentido de que isso se leva para o modo como se vê e se vive as próprias experiências. 
A dificuldade maior é saber o grau de mudança que um sujeito já constituído pode alcançar. Se, por exemplo, levarmos em conta aspectos da teoria freudiana do aparelho psíquico — como a manifestação do superego e id (o primeiro nem sempre consciente e o segundo completamente inconsciente) —, da própria neurociência — com reações fisiológicas cujo subproduto é independente de escolhas racionais — e ainda de características inatas ou adquiridas muito cedo, realmente fica complicado crer em afastamentos radicais da própria identidade.

VI
 
Classificar plantas, como os botânicos o fazem, ou criar interpretações que descrevam o comportamento de uma manada de búfalos, não gera nenhum efeito sobre o comportamento desses objetos de estudo (plantas e búfalos). No caso dos seres humanos, porém, as classificações, categorias e conceitos desenvolvidos para nos definir têm consequências diferentes. Quando uma categoria passa a existir e ser aceita como verdadeira, é bem possível que sujeitos se enxerguem perante ela: “o modo como certas ações e sensações são cientificamente objetivadas  (...) tem enorme influência” sobre os sujeitos e, portanto, sobre as “próprias ações e sensações.” (Oksala). Em outras palavras: os objetos e verdades gerados nas ciências humanas têm efeitos constitutivos sobre os sujeitos estudados.
E não só o que é gerado nas ciências humanas. Também o que é gerado nas artes. Não foram poucos os suicídios atribuídos ao “Os sofrimentos do jovem Werther”, de Goethe, o que atesta como uma obra de arte tem (tinha?) o poder de agir na sociedade. E se hoje o romance ou outras formas de arte não são tão centrais, temos a publicidade, as redes sociais e toda sorte de esquema de vida e do que é ser bem sucedido sendo vendidos diariamente.
Provavelmente, muito do que sentimos e percebemos se origina de crenças e ideais silenciosas que encarnamos sobre o que deveríamos sentir e perceber.
E aqui me pergunto o quanto a imersão na problemática da autoconsciência influencia alguém a alimentar a própria autoconsciência, ou seja, eu teria me tornado tão autoconsciente se não tivesse me envolvido com a ideia da autoconsciência? Parafraseando Clarice Lispector, é impossível saber o quanto sou escrito pelos livros. 

VII
 
O que começa como um anseio sincero e obstinado para entender o mundo e a si próprio pode terminar num enredamento inesperado, pois sempre haverá o perigo de envenenar-se com o mal que se pretendia diagnosticar. 
Nesse sentido, o conhecimento ou a erudição não garantem humanidade ou uma boa vida. E, ao contrário, podem ser conectar, no limite, com a loucura e a perversidade. O filme “Homem irracional”, de Wood Allen, na minha interpretação, joga com esse movimento. Na história, Abe Lucas (Joaquin Phoenix) é um professor de filosofia que se muda para uma pequena cidade da Nova Inglaterra, onde dará aulas no campus local. Lucas é admirado e visto como um pensador brilhante, muito embora não sinta mais entusiasmo pela vida. Está constantemente indiferente, sem alegria, recusando convites, como se não tivesse mais novidades a descobrir. A sua falta de estímulo se reflete em sua produção intelectual, não consegue mais escrever, e também em sua vida sexual, está há um ano sem conseguir transar. Em uma cena, perguntam a ele por que não consegue escrever: “Porque não consigo respirar”, diz. “E o que o faria respirar novamente?”. “O desejo de respirar”, ele responde. Lucas é romântico (não no sentido banal) e misterioso, o que acaba por atrair mulheres à sua volta, entre elas uma professora e uma aluna com quem mantém um caso. No entanto, tudo muda quando Lucas toma uma decisão intempestiva. Ao ouvir, em uma lanchonete, a conversa da mesa ao lado — uma mulher desesperada se queixando de um juiz que arbitrariamente manda e desmanda e ameaça lhe tirar os filhos — o professor de filosofia tem um lampejo, uma ação prática que somente ele, por não conhecer os envolvidos, poderia executar: matar o juiz. Esse relâmpago transforma o seu humor e ele enxerga aí um propósito. A ideia de um crime perfeito vem como uma realização estética e sobretudo como uma contribuição real ao mundo (extrapolando os seus trabalhos teóricos que nunca mudaram verdadeiramente nada), já que ajudaria uma mulher desesperada eliminando alguém que, pelo histórico, era desprezível. O ato de eliminar um parasita que faz do mundo de muitos um inferno é racionalmente justificado, e, nesse caso, não moralmente condenável.  Dali em diante Lucas reabilita a vontade de viver, mostra alegria e vivacidade enquanto começa a estudar os passos do juiz. As pessoas notam a mudança imediatamente e ele explica que resolveu tomar às rédeas da vida e parar de reclamar. Lucas executa o crime, mas depois de um tempo complicações imprevistas começam a surgir. De um primeiro ato criminoso, ele se vê impelido a outro.
Quando o conhecimento e a erudição se encadeiam a uma espiral de racionalidade autojustificável que se basta, as coisas ficam perigosas. Consistência interna em geral não é suficiente para classificar uma tomada de decisão como adequada: é preciso haver correspondência entre o que se tenta obter e como se busca obtê-lo. Assim, a racionalidade nem sempre resulta em algo bom, e em algumas ocasiões volta-se contra o próprio ser criador daquela lógica; a bomba atômica, por exemplo, a tentativa racional de controlar a natureza e terminar por controlar totalitariamente o próprio ser humano — parte inerente da natureza.
Não se trata de julgar como pernicioso o racional, apenas avaliar seus fins. O problema é que acontece de os desdobramentos da racionalidade serem em vários casos fortuitos — e assim talvez o seja o com os desdobramentos de tudo. É evidente, o ser possuidor de uma dada lógica racional não necessariamente encerra em si conhecimento ou erudição. Trato aqui do outro caso, daquele indivíduo que pelo conhecimento, ou razão, chega a uma lógica que o domina e acaba por desembocar no lugar errado, culminando com a alienação ou um fim trágico. 
Otto Weininger, figura cult em Viena no início do século XX, autor que exerceu grande influência sobre Wittgenstein, com seu livro Sex and Character, se suicidou aos vinte e três anos no mesmo local onde Beethoven havia morrido. Como relata Ray Monk, na biografia de Wittgenstein, o suicídio de Weininger, à época, foi visto por muitos como um resultado lógico do argumento de seu livro (um argumento bem maluco, por sinal, mas internamente feito lógico), e foi sobretudo isso que o tornou uma celebridade em Viena. “O fato de tirar a própria vida foi visto não como uma covarde escapatória do sofrimento, mas como um feito ético, uma corajosa aceitação de uma trágica conclusão” (tradução caseira minha). Como o que aconteceu com “Os sofrimentos do jovem Werther”, o suicídio de Weininger inspirou outros suicídios. Segundo Ray Monk, Wittgenstein chegou a se sentir envergonhado por não ousar tirar a própria vida, tendo ignorado a sugestão de que ele era supérfluo nesse mundo.
No filme do Wood Allen, Lucas é um erudito com vasto conhecimento humanístico, o que em nada impede o flerte com a loucura. Não obstante esteja engolfado em uma certa lógica para justificar seu ato, chama a atenção que quando explica à professora e amante sobre a mudança em seu comportamento, mostra total recusa à racionalidade, e também à autoconsciência analítica: “O truque é não examinar as coisas muito detalhadamente”, diz. “Não debater cada tema, mas seguir seus instintos. E escolher a ação a tomar em vez de observar e se perder em clichês convencionais.” Nota-se aí o componente irracional — irracionalidade encabeçada racionalmente —, a vontade de não analisar e seguir os instintos como rota para uma suposta libertação.
Weininger leva sua lógica racional ao limite e Lucas quer dela se evadir. Aqui seria interessante refletir sobre a frase de Goya citada na epígrafe desse texto, que, conforme Todorov, tem duas vias interpretativas. Em espanhol, a palavra sueño possui o sentido duplo, o de “sono” e o de “sonho”. Se ela significa “sono”, “entende-se por aí que, quando a razão adormece, os monstros noturnos levantam a cabeça, e portanto é preferível que ela desperte para expulsá-los. (...) Mas se a palavra significa “sonho”, então é a própria razão que, quando funciona em regime noturno, produz monstros.”

VIII
 
É conhecida a questão que especula sobre a ignorância ser uma benção. Hipoteticamente, o ignorante, com o pouco que sabe, acha que sabe muito, tem mais certezas do que dúvidas e vive num mundo mais confortável, posto que menos atormentado. O autoengano involuntário lhe faz bem. Ao contrário, o não ignorante, quanto mais sabe, mais comprova o tamanho de sua própria ignorância, o que pode o levar a achar-se mais incompetente do que os outros, inclusive do que os ignorantes. O Efeito Dunning-Kruger confirma a relação. 
A ânsia por conhecer, o conhecimento livresco, sobretudo, pode sim ser um tormento. Sob avalanche das ideias dos livros, ficamos minúsculos, insignificantes, e suportar isso nem sempre é fácil. Movido por ideias, engendramos visões de mundo, algumas das quais, como já considerado acima, levam a destinos inconcebíveis, por vezes escuros e angustiantes. O envolvimento desordenado com esse universo também pode afastar pessoas, causar frustrações e tornar alguém esnobe ou arrogante. Equilíbrio é difícil de alcançar, porque sem obsessão e alguma radicalidade (Montaigne é uma boa exceção) raramente se ultrapassa determinada barreira ou se implode determinada doxa. Mas quem ultrapassa certo limite e se autodestrói erra tanto quanto aquele que permanece intacto na ignorância? 
Depois de a consciência ter se tornado quase opressiva, e se ver enredado a certa lógica de ideias, questões como essas vem à mente, e a inconsciência parece um bálsamo — tentação que recaiu sobre Lucas, o personagem de “O homem irracional”, e também a quem se entrega ao álcool (Knausgard) ou às drogas para voltar “a ter a velha liberdade”. Como diz Nietzsche, “mesmo o homem mais racional precisa, de tempo em tempo, novamente da natureza, isto é, de sua ilógica relação fundamental com todas as coisas.”
Presos no presente, sem noção de passado ou de futuro, desprovidos de raciocínio analítico, privados da consciência da identidade ou da própria morte, longe de uma realidade simbólica artificialmente construída, os animais não vivem sob essas perspectivas. As características que nos deram vantagens sobre as outras espécies — a ponto alavancar a empáfia de senhores da natureza — são as mesmas que nos aprisionam em um labirinto insolúvel. A consciência tem a capacidade espantosa de analisar a si própria, mas, além de tudo, é bom lembrar, a consciência é uma parte ínfima do que somos. Se ela parece muito maior do que realmente é, é porque o que não é consciente não nos parece existir.
Seria a condição do animal não humano, vivendo sob peso maior dos instintos, um estado mais desejável? Não levanto a pergunta supondo que o estado do animal não humano seja mais elevado, como se tudo que fosse natural fosse bom, tampouco mais simplório, em absoluto — nas palavras de William James, citado por Sarah Bekewell, “nada entendemos da experiência de um cão, do ‘êxtase dos ossos debaixo das sebes, dos cheiros de árvores ou postes.’” Levanto a pergunta para ligeiramente ponderar sobre se a razão ou a consciência agudas melhoram a vida. A resposta de um pessimista como Emil Cioran é um pouco chocante: “No fundo do seu coração, o homem aspira a reencontrar a condição que tinha antes de possuir consciência. A história é meramente um desvio que ele toma para chegar lá.” Todavia, desconfio que o reativo narrador de Memórias do Subsolo esteja mais acertado ao dizer que, embora ele tenha declarado no início do livro que a consciência é o maior infortúnio para o homem, “eu sei que o homem ama a consciência e não a trocará por satisfação alguma.”

IX
 
As pessoas fazem ideias estranhas a nosso respeito, nos adaptando a seus próprios objetivos. Mas e as ideias que fazemos de nós mesmos, estão de acordo com quem somos? Entre o olhar do outro e o nosso próprio olhar, existe aquilo como um eu verdadeiro? E se só podemos observar a partir de um ângulo e os outros também, então esse ser que realmente somos está fadado a um não-lugar, a uma dimensão inapreensível por ninguém?
Chegando ao fim do período de produção desse texto, percebo que percorrer todo esse itinerário me afetou em muitos aspectos. Quase dois meses de leituras e reflexões-esponja, que absorviam tudo ao meu redor para os meus propósitos; alucinações textuais; acessos de angustia por deixar muito de fora e ao mesmo tempo suspeitas sobre estar montando um espetáculo de segunda por meio do enfeitiçamento da linguagem; análises precárias do efeito, mais ao final, porque eu não queria um texto argumentativo, lógico, que fornecesse uma resposta qualquer, e sim algo cujo efeito geral deixasse ligações não completamente resolvidas, abrindo margem para intuições não verbalizáveis por entre as frinchas dos parágrafos. Como um texto que fala de autoconsciência, nada mais normal do que falar de si próprio, o texto se autocomentando, um pouco paranoico, não sabendo quando parar, não sabendo finalizar, desconfiando que fracassou em certos aspectos formais, mas reconhecendo os efeitos que causou sobre o indivíduo que o escreveu, e que começou a escrevê-lo para tratar de um tema incômodo, a confusa vontade de isolamento, que foi evoluindo e se modificando conforme eles (o texto e o indivíduo) iam se escrevendo, porque uma das coisas que se pode afirmar é que escrever, além da tentativa de capturar o sentido de estar vivo e consciente, além disso e de muitas outras coisas, escrever é também se construir, e escrevendo esse texto algo mudou de lugar, não importa em que escala, pois talvez não exista opção a não ser perseguir, enquanto houver fôlego, esforçar-se para se libertar do que o pensamento pensa silenciosamente, sabendo que não há descanso ou destino de chegada e o que resta a fazer é tentar lidar com a insuficiência e o estado de incompletude, valorizar o defeito e significar o banal, enfim, ter em mente o amor fati, e então, se o simbólico constrói realidades, terminar diferente de como começou já é um início, porque se começou com um não,  agora, mesmo se com as mesmas incertezas ou talvez mais, nem que seja para efeito de equilíbrio, o melhor a fazer, além de finalmente terminar, é terminar com um Sim.